sexta-feira, 24 de julho de 2015

Alain Bisgodofu, um poeta das ruas



Por Vinícius Fernandes Cardoso 

Um poeta está nas ruas
N
ão me recordo quando conversei com Alain Bisgodofu pela primeira vez; se me falha o momento, a localização seria fácil: em algum lugar da geografia literária e boêmia de Belo Horizonte: Rua da Bahia, Edifício Arcângelo Maletta, Palácio das Artes, Praça da Liberdade, Savassi, não sei, até mesmo porque sempre vi Bisgodofu caminhando, tal qual um andarilho, sempre inquieto de corpo e alma.
Desde quando frequento efemérides em BH, deparo-me com ele perambulando pelas ruas do Centro e arredores. Que figura! Por vezes, um cruzava o caminho do outro, agora menos porque ambos rodam de moto, e o motorizado não vê a cidade, não vê as pessoas, ele passa por elas.
Quando a pé, um acabava  trombando com o outro, seja no baixo, seja no alto Centro. Ele me conta sobre suas novas andanças e empreitadas, eu, geralmente enfiado em alguma rotina, conto minhas maçadas. O que nunca disse a ele, digo agora, é que a sua presença deambulante pelas ruas de BH sempre me impressionou e me deu uma referência: um poeta está nas ruas.

Um dândi suburbano
Quem já fitou Bisgodofu por aí, percebeu que, geralmente, ele anda bem trajado, não necessariamente alinhado ao rigor clássico, mas bem agasalhado e elegante, como um dândi parisiense. Quem sabe ele seja a reencarnação de um poeta simbolista ou surrealista da belle époque francesa? Ou o reencarne do escritor carioca João do Rio, conhecido pela gala? Bisgodofu passaria a ser, nesta vida, o “João de BH”, que tal? O poeta parece ter um camarim da Globo, quem sabe ele herdou um roupeiro de teatro de ópera?
Gozação à parte, a elegância de Bisgodofu vem de dentro para fora, não se trata de ostentação, esnobismo ou exibicionismo. A galerinha de hoje, que faz selfie de qualquer coisa, achará “massa o look” do poeta, sem entender que Bisgodofu é de outros carnavais. Ele é de 1978, portanto, anterior às modas hodiernas. 
Eu também não sei por que Bisgodofu traja-se como um poeta, talvez porque ele seja um. O que eu manjo é que nele a vestimenta não cai forçada, não se trata, por exemplo, de um empetecamente de roupas de grife, até mesmo porque os poetas na mais das vezes não têm recursos para essas gastanças. Como artista plástico, quem sabe Bisgodofu use o próprio corpo como suporte para exercitar combinações estéticas? Sei que esse papo pode soar afrescalhado aos machões, mas lembro-lhes que a moda é uma arte da sedução. Exemplo? Uma vez uma garota ficou atraída por mim devido a uma jaqueta jeans que eu usava à época, isso procês vê
Essas abobrinhas todas são para dizer que Bisgodofu deixa impressão, entre outras coisas, pelo trajado. Lembro-me de conversas com amigos, nas quais alguém queria cita-lo e, para o interlocutor entender de quem se falava, por vezes era citado o fator indumentário:

—Lembra-se do Bisgodofu?
— Bisgodofu? Quem mesmo?
— Aquele do Palácio das Artes, da Savassi, que anda todo arrumadinho.
— Ah, sim, figuraça!

Por essas indexações que as pessoas fazem, alguns indivíduos vão tornando-se “lendas”, claro, sempre com o risco da caricatura. Quem sabe seja o caso do nosso poeta? Quem sabe ele esteja tornando-se uma espécie de figura folclórica, um Celton, o herói de Belô ou uma loira do Bonfim, algo que, pelo que o conheço, ele odiaria.  

“Você é dos meus, da minha linhagem”
Alain Bisgodofu é alguém quase impossível de definir e mesmo difícil de descrever (quem não o é?), até mesmo porque o poeta mantém uma penumbra de mistério sobre si, nem mesmo nos revela data de natalício. É poeta de mão cheia, visceral, artista plástico também.
Nascido no Rio Grande do Sul em 1978, quem o conhece de vista, geralmente em suas andanças, toma-lhe como uma espécie de reencarnação dos antigos saltimbancos da Idade Média, dândi tardio de uma ‘parisiense’ Belo Horizonte de outrora; desde onde sei, Bisgodofu perambula, qual um gênio, falando com seus botões e abordando possíveis compradores dos seus livretos.
Costumava carregar rabiscos dentro de uma valise, tempos outros, levava consigo a sua máquina de escrever portátil; duns tempos pra cá, despojou-se desses objetos e passou a decorar os próprios versos. É uma das memórias mais potentes que já vi na minha vida, podendo citar detalhes de histórias idas e vindas, pessoas vivas e encantadas, com brilho e entusiasmo.
Conheceu presencialmente o poeta surrealista Roberto Piva que, lendo-lhe os versos de As Pregas da Boca (2008), livro de estreia de Bisgodofu, chegado a Piva por mão de terceiros, teria dito: “Você é dos meus, da minha linhagem”.

A sinceridade das crianças e a barbárie brasileira
Bisgodofu publicou por conta própria os seus quatro livros. As Pregas da Boca, o livro inaugural,chegou a ser vertido para o francês. Dito isso, os seus livros são uma amostragem da sua obra total, pois muitos dos seus escritos permanecem desconhecidos no seu blog, intitulado “Nenhuma ousadia é fatal” (www.bisgodofu.blogspot.com.br), título que remete a verso do desconhecido poeta francês René Crevel, desconhecido por nós, pois os autores desconhecidos pela média são exatamente os lidos por Bisgodofu. 
Nunca me desceram redondo os versos de Fernando Pessoa que dizem ser o poeta um fingidor. Muitas vezes, pelo contrário, tenho para mim o Poeta como ser um portador de Verdade; mas, como vocês sabem, “verdade” é uma palavra complicada, os filósofos caem de pedra em ouvi-la sem o devido relativismo. Para agradar os filósofos, fiquemos com apenas uma das “verdades”: refiro-me a sinceridade das crianças.     
Não à toa, Bisgodofu assina os seus textos como escritos por “Alain Bisgodofu e suas crianças que brincam em tempos de guerra”,  sugerindo assim, a sinceridade das crianças; já “os tempos de guerra”, num país sem guerra oficial, como o Brasil, talvez se explique pela guerra social, não só a luta de classes, na ótica de Marx, mas (por que não?) à guerra de todos contra todos, na visão de Thomas Hobbes, considerando a generalidade da barbárie brasileira. 

As Pregas  da Boca e Pajelança  da voz: poesia da oralidade
Como é comum com quase todos os autores, o primeiro livro é sempre sintomático, apresentando uma tônica que, de um modo geral, mostra o jeitão daquele criador dali em diante. 
As Pregas da Boca (2008), desde o título, evidencia a acidez e mordacidade de uma poética iconoclasta que lança mão de amarguras, ironias, deboches, delírios, ao fazer poético. O livro começa citando o lamentoso Jó, o da Bíblia:
Minha alma certamente se enfada da minha vida. Vou externar minha preocupação comigo mesmo. Vou falar na amargura da minha alma!

Aliás, todos os longos poemas do livro são precedidos por epígrafes e citações, seja de livros bíblicos, seja de autores como Raduan Assar, pois referências sobram ao autor erudito, nenhuma delas gratuita, colocada li por mero empavonamento, pois conversam com as próprias angústias do poeta, aliás, há quem diga que a Literatura instaura um diálogo silencioso entre mortos e vivos, entre indivíduos de épocas diferentes, linhagens que se reproduzem ao longo do tempo.  
Do segundo livro de Bisgodofu, Pajelança da voz (2012), me chamou atenção o poema intitulado “rarámuri” (p.47), que me remeteu a uma experiência do autor entre índios de Goiás, que me foi contada por ele. Ah, bom que se diga, falamos de um poeta que parece viver a poesia, antes de escrevê-la. O poeta Roberto Piva, que elogiava a vivência, escreveu: “Não acredito em poeta experimental que não tenha vida experimental”.
Não sei se por isso, Piva gostou dos poemas de Bisgodofu, fato é que nosso Alain, em pleno século 21 (querem crer os meus pruridos românticos), teima em não dissociar vida e arte. Mesmo sem ser maluco de estrada de todo, Bisgodofu é um nômade, um experimentador da vida. Mesmo hoje, quando talvez a idade e à responsabilidade de pai o refreiem, ele transita, pelo menos, por quatro cidades brasileiras, a saber: Contagem, BH, São João del-Rey e Arraial da Ajuda, onde mora a sua querida filha.
Não tenho vergonha de confessar de que, para assimilar os dois primeiros livros de Bisgodofu, eu precisaria ver e ouvir o autor os declamando, isso porque ele é um poeta da fala, antes de ser um poeta do papel; seus versos são narrativos e delirantes, sem pontuação. Se ele escrevesse como um parnasiano, era só seguir a pontuação para saber como declama-los, o que não é o caso.   
Careço, idealmente, presenciar o próprio poeta declamar os poemas de As Pregas da Boca (2008) e Pajelança da Voz (2012), para assimilá-los melhor, algo ainda sem ensejo. Se me falta audição dos livros citados, para compensar, presenciei o poeta me declamando outros poemas seus. Bisgodofu fala (berra, se houver burburinho) os seus poemas com vibração, geralmente gesticulando, encarnando o poema. Sendo assim, penso que não devemos ler As Pregas da Boca e Pajelança da Voz, em leitura íntima e silenciosa, mas em voz alta, se possível, em delírio.

Influências literárias?
Bisgodofu é um leitor de autores incomuns, um leitor erudito, não livresco, mas que lê os seus eleitos com gosto e envolvimento. Quando conversamos, às vezes, ele me reporta às suas leituras que, diga-se de passagem, são raras e interessantes.
Será que o nosso poeta influenciou-se por suas leituras?
Ora, cruzando as suas leituras (que vão da poesia ao romance, de autores estrangeiros a brasileiros, de autores clássicos a marginais) com suas escritas, penso que ele pode ter sim recebido influências (Antonin Artuad, Charles Bukowksi et al), mas assimilou essas influências sem instaurar uma crise de identidade ou, pelo menos, soube disfarçar eventual “angústia da influência”, aqui eu citando o crítico literário estadunidense Harold Bloom.
Penso que Bisgodofu pode ficar despreocupado em matéria literária, uma vez tendo digerido bem as suas influências literárias sem sofrer bloqueios, inclusive, conseguiu transportá-las para o seu tempo histórico e pessoal. Como que ele recolheu lições dos seus eleitos e as transportou ao seu tempo vivido. Com isso, não quero dizer que, como autor literário, ele escreveu obras do mesmo nível das que o influenciaram, mas que conseguiu ser ele mesmo, após passar por elas, tendo elas apenas acrescentado àquilo que já havia nele, influências que não o dispersaram, alienaram-no, mas que aprimoraram a sua mensagem, somando-se ao seu eu lírico.

Paquera instantânea e Infernografia: o surgimento da personagem (quase alterego) “Nina sem Meia”
Em 2014, Bisgodofu lançou dois opúsculos que, sem querer elogiar, são algo novo em relação aos seus dois livros anteriores. 
“Paquera instantânea: guia prático de relacionamentos e outras afinidades sem futuro” trata-se de um livrinho com várias sátiras, tiradas, sacadas, “sabedorias” de boteco e de vida, tudo temperado com jocosidade e ironia, aonde o tema erótico-amoroso conduz a pulsão. No último poema, aparece Nina sem Meia, personagem feminina erotizada, vista dum prisma quase machista.
Em “Infernografia: confissões de uma psicóloga que nunca foi brocha”, Nina Sem Meia aparece com toda a força, na primeira pessoa. Personagens assim são comuns na Literatura. Lembro-me de “Mirna”, personagem de Nelson Rodrigues.
Nina em Meia, penso, foi um achado do nosso poeta, a quem ele debruçou-se sobremaneira, a ponto de manter uma verdadeira sequencia folhetinesca da personagem no perfil Cabaré Literário, no Facebook. Bisgodofu, às vezes, em um único dia, fazia três, quatro, cinco postagens com poemas escritos sob a voz de Nina sem Meia, sua psicóloga desbocada.

Da poesia intransitiva ao folhetim comunicativo
Como eu disse lá atrás, esses novos escritos nada lembram As Pregas da Boca e Pajelança da Voz, seus dois primeiros livros, cuja linguagem era mais “bisgodufudiana”, delirante, intransitiva; já os seus novos opúsculos, apresentam linguagem mais comunicativa ao leitor médio atual, impinge-nos uma personagem criada na fértil imaginação erótica do autor.
Embora a linguagem dos seus últimos folhetins apresente-se mais “comunicativa”, nem por isso, ela perdeu em dinâmica, inventividade e protuberância vocabular; é mais acessível, nem por isso mastigada. Bisgodofu usa (quase abusa) gírias e palavrões do vernáculo corrente, mas manipula o léxico com maestria de artífice da palavra, sabedor do prazo de validade de cada vocábulo. 
Pessoalmente, agradou-me esses dois últimos livretos do poeta, no que sou suspeito em dizer, pois geralmente gosto das letras (verso, prosa) que conseguem alcançar algum grau de comunicação entre autor e leitor, e Paquera Instantânea e Infernografiaconseguem fazer isso, são textos possíveis de ler-se em mesa de boteco e os convivas prestarem alguma atenção.

Uma poesia pirada num mundo careta
Bisgodofu é poeta difícil do leitor acompanhar, não só porque os seus poemas são delirantes, mas porque é escritor produtivo. Quem ler o que há dele publicado, fica pasmo. Criatividade é mato.
O mestrando ou doutorando que escolhê-lo como “objeto de estudo”, daqui, sei lá, 100 anos, quando o poeta estiver comportadamente morto, vai passar rabo, primeiro porque o orientador nada poderá orientar, segundo porque o nobre estudioso se deparará com uma poética pirada em um mundo careta.
Maio de 2015.
 
Blog Folhetim Volantehttp://folhetimvolante.blogspot.com.br/

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